A revista Veleia, publicada pela Univer- sidad del País Basco, tem como objetivo propagar os estudos a respeito do mundo antigo nas áreas de Pré-história, História,
Arqueologia e Filologia Clássica. O formato do periódico conta com um dossiê te- mático, artigos livres, varia e noticiário epigráfico. O exemplar de número quarenta, que propõe trabalhar com os estudos voltados para a etnografia histórica da comu- nicação, conta com a introdução de Rodrigo Verano, que ressalta a importância do exame das formas de comunicação para o conhecimento das diversos formatos de organização social. Para isso, o pesquisador que optar pela etnografia da comu- nicação como uma metodologia de trabalho deve atuar no campo multidisciplinar, aplicando a análise filológica dos textos complementar aos métodos arqueológicos no trato dos vestígios materiais.
Além da introdução, o dossiê temático é composto por mais seis artigos, centrados no estudo das línguas antigas com a finalidade de se entender as práticas comuni- cativas dentro de uma determinada cultura. E. R. Luján propõe uma reflexão sobre a aplicabilidade da etnografia da comunicação no contexto das línguas paleo-his- pânicas, através do estudo de caso de textos escassos e fragmentários: comunicação por carta, inscrições funerárias, téssera de hospitalidade e o lusitano como língua de uso religioso e ritual. Com o suporte do modelo conhecido como SPEAKING (Setting and scene, Participants, Ends, Act sequence, Key, Instrumentalities, Norms of interaction and interpretation, and Genre), o autor explorou os distintos tipos de atos de fala e de diálogos, identificando algumas práticas comunicativas peculiares a algumas destas culturas, que, logicamente, se explicam em termos de hábitos sociais e culturais que lhes são específicos.
Os arquivos de Boğazköy, descobertos no local da antiga capital do império hiti- ta, revelaram uma documentação relativa a rituais de cura SISKUR realizadas por magas dentro do palácio real. J. A. Álvarez-Pedrosa se debruça nesta documentação para mapear os processos de tradução e de reelaboração dos textos mágicos hititas
Índice Histórico Español, núm. 137 (2024), ISSN: 0537-3522, e-ISSN: 2339-6989, (p.227-231)
©Nathalia Monseff Junqueira, 2024-CC-BY-ND
REVISTA DE HISTORIA DE ESPAÑA | SPANISH HISTORY MAGAZINE DOI: 10.1344/IHE2024.137.16
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que eram ditados por estas mulheres, que falavam as línguas luvita ou hurrita, e o processo de escrita realizado pelo escriba através da mediação de um especialista nesses rituais. Ao longo da leitura, Álvarez-Pedrosa aponta para os sinais de ora- lidade refletidos nos textos escritos e as interferências do escriba, salientando uma situação complexa entre a maga, o tradutor, o escriba e o especialista que supervi- sionava o processo e a manutenção de muitas das palavras originais da maga, pela virtude mágica que a recitação na língua original possuía.
Marina Martos Fornieles centra o seu artigo na análise dos atos de súplicas, focando principalmente nos recursos e nas estratégias utilizados pelos suplicantes para conquistar o seu propósito. Fortemente marcado pelo ritualidade, os atos de súplica combinam o discurso com as interações não-verbais, ou seja, os gestos. Logo no início do texto, a autora informa que a súplica pode ser dividia em três partes: a aproximação do suplicante de um indivíduo ou de um lugar, o uso de gestos carac- terísticos e o ato da fala, da súplica propriamente dito. Além disso, temos o desfecho deste ritual, a resposta do interlocutor, completando o ato de súplica, que é dividido em categorias, como ordens, solicitações, conselhos, sugestões, entre outros.
M. Martos concentra-se em três atos de súplica que aparecem consecutivamen- te no canto 22 da Odisseia, que narra o castigo realizado por Odisseu após a sua volta para Ítaca, contra os homens desleais a ele. Através de uma metodologia que combina o estilo comunicativo, a pragmática linguística e a teoria da cortesia, sem esquecer a contribuição dos gestos típicos de interação, a autora examina as dife- rentes estratégias utilizadas pelos participantes da cena para cumprir com sucesso seus objetivos no ato de súplica. O texto também revela como a configuração das diferentes variantes sociais dos indivíduos participantes no ato de súplica determi- na definitivamente suas escolhas linguísticas, caracterizando o seu comportamento frente a Odisseu e se o ato de súplica alcançou o objetivo desejado pelo adivinho, o aedo e o arauto.
O estudo R. Verano propõe-se a analisar as cenas de saudação reproduzidas nos diálogos de Platão a partir de uma observação atenta destas cenas, identificando uma série de etapas, como o encontro e o reconhecimento das personagens, a apro- ximação, o contato físico e o intercâmbio verbal no início da prosa platônica, ou seja, uma ação que contempla elementos verbais e não verbais. Para R. Verano, à intera- ção não verbal dos personagens têm maior peso nas cenas de saudações na produ- ção de Platão, incluindo o olhar, a proxêmica e o contato físico, que aparecem com maior frequência nos diálogos diegéticos. O artigo traz contribuições importantes ao estudo dos diálogos platônicos ao aplicar o exame da etnografia da comunicação nessa fonte, oferecendo um testemunho das práticas comunicativas cotidianas na Grécia Clássica.
No artigo de Berta González Saavedra, a comunicação verbal e não verbal me- diada pelo estereótipo cultural associado à figura do persa através do seu reflexo na comédia latina homônima de Plauto é o mote central. No teatro romano, a socieda- de projeta certos traços caricaturizados e comportamentos específicos baseados em crenças compartilhadas pela sociedade, ou seja, os estereótipos compartilhados por esta comunidade. Partindo desta perspectiva, B. Gonzáles compara a imagem do persa na comédia Persa com o uso equivalente do estereótipo fenício no Poenulus,
permitindo observar o funcionamento do estereótipo positivo, no caso persa e ne- gativo, para o fenício torna-se um impeditivo para uma reflexão mais aprofundada destes povos.
O último artigo do dossiê temático tem como estudo de caso um texto hagiográ- fico cristão do início do século VII escrito no contexto do Império Sassânida. Aitor Boada Benito examina o uso da pele como veículo de comunicação por meio de símbolos específicos que atuam na formação das expressões culturais. Mediante a aplicação da metodologia baseada na teoria dos códigos de fala desenvolvida por Greg Philipsen, o autor se debruça sobre os significados associados à presença ou ausência de marcas na pele, principalmente dos mártires, no contexto das comuni- dades cristãs da Antiguidade Tardia, compreendendo como funcionaria a relação da criação da identidade e da alteridade individual e coletiva nos espaços de produção e recepção desses textos.
A segunda parte da revista é composta por três artigos que estudam diferentes contextos históricos. Cristóbal Macías compara o cenário escatológico elaborado por Cícero na obra Sommium, datada do I a.C. e os comentários dedicados a este texto idealizados por Macrobio, intitulado Commentarii, dando destaque à morada da alma após a morte. Ambos os autores, influenciados pela crescente astrolatria, asseguravam que a alma, de origem celeste, imortal e divina, regressava para a sua morada celestial na Via Láctea após a morte do corpo; porém, em velocidades dife- rentes para os governantes e sábios, que aconteceria de forma direta e rápida e mais demorado no caso das almas inclinadas aos prazeres do corpo. Estas precisavam ser purificadas no mundo sublunar através de ciclos de reencarnações e deveriam, durante a sua descida para encarnar nos corpos, adquirir de qualidades ao cruzar as diversas esferas planetárias.
José Carlos Martín-Iglesias sugere uma nova datação para o Cânon 10, incluí- do na coleção Excerptum Canonicum, elaborada no final do VIII Concílio de To- ledo (c. 653) e frequentemente atribuído ao III Concílio de Sevilha (c. 624). O con- teúdo do referido Cânon retrata a recusa dos judeus em batizar os seus filhos após o decreto do batismo forçado da população judaica da Hispânia, promulgado pelo rei Sisebuto por volta do ano 615. A análise cuidadosa dos termos e das informações históricas presentes na redação do texto, como a ascensão de Adaloaldo ao trono longobardo em 616, permitiu a Martín-Iglesias concluir que este tema se tornou ur- gente para o Estado e para a Igreja, devido às dificuldades de se implantar a nova lei, reforçando a hipótese da convocação de um Concílio entre os anos de 616 e 617 para discutir a questão, resultando no Cânon 10, sendo, também, anterior ao II Concílio de Sevilha, em 619.
Valeriano Yarza Urquiola propõe um trabalho de fôlego ao realizar uma edição crítica e a tradução, a partir das primeiras edições do texto, da obra de Maximiliano Transilvano, a primeira narrativa publicada acerca da expedição de circunavegação do mundo, realizada por Magalhães e Elcano (1519-1522). Na introdução deste ar- tigo, V. Urquiola informa que Transilvano, que era secretário do imperador Carlos I da Espanha, enviou uma carta-relato, escrita em latim, para M. Lang, Cardeal de Salzburgo, no mês seguinte à chegada da nau Victoria com os sobreviventes da via- gem em Sevilha. Sua fonte de informações foi, principalmente, o capitão Elcano, que
narra o trajeto que os barcos fizeram para alcanças as ilhas Molucas em buscas das especiarias cobiçadas pela Espanha, mas que estava impedida de acessar devido ao Tratado de Tordesilhas, que proibia as expedições espanholas pelo Oriente, espaço destinado aos portugueses.
Os dois textos, inseridos na sessão Varia, tratam de revisões novas propostas de leitura a respeito de inscrições encontradas recentemente no território espanhol. Noemí Moncunill, Joan Ferrer i Jané e Joaquín Gorrochategui tabularam os selos inscritos sobre os dolia ibéricos encontrados no oppidum de Ensérune (Hérault, França), que possuem a maior coleção deste tipo de inscrições dentro da epigrafia ibérica. Os autores não somente disponibilizaram novas leituras das inscri- ções conhecidas, como também editaram novos exemplares. O texto oferece a lei- tura e o comentário dos selos, sobre aspectos paleográficos, onomásticos e linguís- ticos, com o objetivo de contextualizar o nome artesão. Apesar da grafia ser sempre em língua ibérica, existe um certo equilíbrio entre os nomes ibéricos e gauleses na composição dos selos.
No trabalho intitulado Salagin (no Salus Augusta) en una inscripción de El Cen- tenillo (Jaén), que também se insere nos estudos sobre epigrafia romana, Helena Gimeno e Javier Velaza, tiveram a oportunidade de editar o primeiro verso da ara romana de El Centenillo (Jaén), encontrada em um contexto de mineração de Riotinto. Tradicionalmente considerada como uma dedicatória a Salus Augusta, os autores defendem a atribuição a Salagin, uma divindade relacionada com a atividade da mineração, já referenciada em outro achado ibérico na região da Oretânia.
Na sessão notícias epigráficas, os artigos têm como temática a interação cultural entre os povos ibéricos e os romanos. Javier Herrera Rando apresenta dois grafites ibéricos encontrados durante as escavações no sítio ibero-romano de La Corona, na cidade de Fuentes de Ebro, em Saragoça, na década de 1980. O primeiro, feita sobre patera B da Campânia, contém um antropónimo, enquanto o segundo, grafado em uma lasca de cerâmica muito deteriorada, apresenta pelo menos um sinal legível. Borja Díaz Ariño Carlos Jordán Cólera oferece uma nova proposta de leitura do antropônimo mencionado na inscrição votiva CIL II 2990 encontrada em Mon- teagudo, temática do artigo La inscripción votiva de Monteagudo, Navarra (CIL II 2990). Até o momento, este seria o único exemplar da época imperial no território do rio Queiles no qual se menciona um antropônimo indígena. Trata-se de um pe- destal que sustentava uma estátua de uma divindade. Os autores exploram, ao longo das páginas, a hipótese do nome que aparece nesta inscrição seja a versão latinizada de um nome celtibérico.
Dialogando em maior ou menor medida, os artigos apresentam uma diversidade de evidências e abordagens dentro de contexto históricos distintos. São propostas novas chaves de leituras, metodologias, traduções e revisões de informações que já estavam cristalizadas no meio acadêmico e aplicáveis em documentos escritos e na cultura material. Pensar como as interações sociais e práticas comunicativas, verbais e não verbais, ocorriam dentro das comunidades e entre elas, gerando a criação de novas identidades ou o reforço de alguns estereótipos, é possibilitar novos olhares para as fontes históricas.
A leitura da revista Veleia, torna-se, assim, proveitosa, instigante e indispensável para o estudioso desejoso em estar atualizado a respeito das novas pesquisas no campo da Pré-história, da História, da Arqueologia e da Filologia Clássica.
Nathalia Monseff Junqueira Universidade Federal de Mato Grosso do Sul nathalia.m.junqueira@ufms.br
ORCID ID.: 0000-0002-4064-7701
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